A Baleia, de Darren Aronofsky, e um pouco de honestidade

Uma vez me contaram sobre minha vida passada. Eu era uma mulher na antiga França de 1800, onde o transporte ferroviário ainda iniciava. Segundo a história, os meus pais haviam me matriculado numa escola de música, pois meu autodidatismo na arte havia expandido para algo muito além de minha casa. Eu conheci uma menina e viramos melhores amigas, ainda que a diretora da escola desconfiasse que éramos amantes. Os pais de minha amiga souberam, ela saiu da escola, nossa amizade minguou e ela se matou. Depois de um tempo, e de vários tormentos, foi minha vez de definhar e morrer jovem, aos 23 anos, por não me alimentar.

A primeira vez que ouvi essa história, eu chorei copiosamente. Ali estava muito do que já passei na vida, minha essência e os caminhos que tendo a tomar em adversidades. Mas, ao contrário da mulher francesa que me narraram, eu agora sou um homem de 34 anos com problemas com meu corpo e que exatamente ao contrario, ao invés de não se alimentar, entorpece. Um homem que convive há 14 anos com a depressão e que tem colocado suas ansiedades na compulsão por comida. Já cheguei a 114 quilos antes de emagrecer para 81. Após uma fase especialmente ruim na minha vida, pós pandemia, eu estou novamente próximo aos 110 kg. A única decisão que faço que me alegra nas últimas semanas, meses e, talvez, anos é a comida que posso comer durante a noite. O quanto posso comer até me sentir inchado e, finalmente, representando meu ódio por problemas interiores externamente.

Com uma expressão atormentada detrás de seus olhos grandes, delicados e bondosos, Brendan Fraser perdeu seu companheiro, amigo e amante. Se afastou de amigos, família e vive solitariamente num apartamento escuro e sem espelhos. O contato com seu reflexo é no banheiro enquanto chora, sem condições de suportar mais. É um WALL-E moderno, que encara o universo tristemente, buscando a reaproximação com algo num mar de lixo.

A porta de seu apartamento sugere dois olhos, como se a rua estivesse ali, observando-o, julgando-o, desprezando-lhe. A sociedade o rejeita. Ao irmos até o seu deck, nós notamos uma falha na madeira. Uma peça faltando, quebrada, como algo rompido, um vazio que jamais é preenchido. É seu amor que partiu.

Não há nada para Charlie. Online, ele esconde quem é, enquanto outros escrevem, se expõem e felizes buscam fortalecer seus vínculos sociais. Podem viver a promessa de suas vidas. Charlie não pode se mostrar. O que mostrar? A repugnância expressa de dentro pra fora? A ansiedade que o consome, enquanto sabe que vai morrer se continuar fazendo o que faz, mas tendo exclusivamente o controle apenas sobre o que coloca na boca?

Num momento como Filadélfia, em que Tom Hanks assume ao ouvir a ópera de seu apartamento uma representação linda sobre sua tragédia, Brendan Fraser declara que ele quer fazer pelo menos uma coisa boa em sua vida. Só por um momento.

“Você está prejudicando sua saúde”, eu posso ouvir minha mãe chorar, enquanto coloco no carboidrato e na vida online uma felicidade e uma saciedade que não está lá. Me olhar no espelho? Darren Aronofsky me deu meu retrato. Eu não conseguia olhar. Como o personagem de Brendan Fraser, ao comer ansiosamente e vomitar, ao tentar se levantar novamente, ao ouvir testemunhos de quem foi e de quando foi feliz, ao ter essas recordações, eu não consegui encarar. Pela primeira vez desde Réquiem Para um Sonho, eu não consegui encarar. Ao menos, a luz me salvou. Não aquela que pensava que seria, mas a que aparece para celebrar o fim de uma obra que me atropelou. Que me lembrou de quem sou, de quem fui e daquilo que já me contaram.

A Baleia, como a obra que celebra, expressa nosso mundo, nossa vida e aquilo que não falamos com honestidade. Charlie me pediu pra escrever algo honesto. Aqui está.

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