Ainda permanece em tabu o abuso masculino, seja ele físico ou mental. Mesmo quando ele surge declaratório, ele permanece escondido em alguma prosa ou em algum testemunho entulhado de alegorias ou símbolos que exprimem o que de fato se quer dizer. Um homem abusado pela própria mãe? Inconcebível. Violentado pela própria esposa? Impossível. A masculinidade tóxica atinge as mulheres em maior nível, sim, mas há muitos homens que acabam escondendo quem realmente são para não tocar em determinados assuntos. Como existiria uma vítima masculina de assédio moral? Sexual? Agredido por uma mulher? A repressão atinge mulheres e homens – alguns em maior grau do que outros, alguns que falam mais sobre o assunto que outros. Esses tabus também podem refletir e viralizar ansiedades de artistas que, não sabendo como discutir seus próprios traumas, recorrem à arte. Expõem em seus testemunhos o que conhecem ou o que conheceram. Não quero ser leviano em falar que Ari Aster pode ou não ser uma vítima (ou que conhece uma), mas é irrefutável que todos os seus filmes abordam isso de alguma maneira – o abuso, o trauma, a depressão e a impotência no berço familiar.
Ao começar pelo seu curta-metragem para a American Institute, The Strange Thing About the Johhsons, que abordava um caso de abuso no ceio familiar de uma família judaico-cristã, onde o pai se relacionava sexualmente com o filho. A medida que o filho cresce e descobre mais e mais o sexo, a trama entra num trauma horripilante e desconfortável. No filme, a mãe olha para o outro lado e o protagonista a julga por isso. Em Hereditário, primeiro longa do cineasta, a personagem de Toni Colette tem um relacionamento procedural com seu marido, enquanto sofre por depressão, perde sua mãe, sua filha e, impotente, recorre a uma fé desorientada e abusiva de uma estranha. Dani, em Midsommar – O Mal Não Espera a Noite não é mãe, mas o trauma da perda dos pais por uma parente, sua própria irmã, arruína o ceio familiar e deixa ainda mais claro o relacionamento abusivo com Christian.
Em Beau Tem Medo, a impotência está nos olhos tristes de Joaquin Phoenix, um Mersault (de Camus) moderno, cuja rotina hipocondríaca e agorafóbica transforma suas experiências em constantes pesadelos. Desde o início, Aster organiza sua trama numa dinâmica intrigante que visa expor cenários minimalistas com cores e artefatos abundantes completamente deslocados do espaço – como se estivéssemos experimentando uma viagem entorpecedora na mente de Charlie Kauffman.
Beau é uma experiência difícil, como a vida do protagonista. Julgado pelas pessoas a sua volta, sem fala e impotente perante a grandes decisões, o personagem de Phoenix se torna acostumado a correr ou a simplesmente desistir. Curiosa e ironicamente se acha coadjuvante numa vida de decisões sob as quais ele não possui nenhuma. Ao saber da morte de sua mãe, Beau se sente nu e dilacerado – tal qual tivesse recebido uma facada e seus órgãos tivessem apodrecendo. Mas esse é apenas o início de sua jornada traumática. Beau observa todos filmando sua vida, observando seus comportamentos, apontando para ele, enquanto ele ainda teme em continuar seguindo em frente – no retorno às suas raízes. Ele encontra esse momento… na arte. Gosto de uma das frases que Ari Aster usou numa entrevista sobre Midsommar em que diz: “eu queria pelo filme, pela arte, exorcizar meus demônios, o que eu estava passando, o que eu queria dizer; é bom encontrar pessoas que se associam com as mesmas neuroses e passam pelo mesmo que nós”.
No teatro de sua vida, Beau se emociona e grita da plateia: “sou eu! Essa história é a minha”. Aster discute o poder da arte em nossas vidas, onde nos encontramos em outras histórias, onde fazemos parte de algo ou em que simplesmente não sabemos o que estamos fazendo ali (como um personagem da plateia diz). Se prestarmos bem atenção, nós saberemos.
Ao mesmo tempo em que aborda a arte, o diretor quer discutir a cultura pop ou a era moderna com suas gravações incessantes, seus julgamentos cômicos e seus tribunais. Sim, o fim de Phoenix é sua saída em grande estilo; sim, é o mesmo tribunal que condenou Mersault; sim, são os mesmos julgadores que lhe observam com curiosidade, enquanto claramente você não está bem ou está implodindo. Ninguém reage para ajudar, mas olha com curiosidade o que pode tirar de toda uma história exposta.
Não é uma experiência agradável. Assim como não é uma boa experiência observamos as memórias de Beau a medida que ele lembra de sua primeira paixão ser tirada de sua vida e a malícia de sua mãe – no quarto de um hotel, enquanto fala sobre ele ser um grande homem. Seu tom de voz insinua algo que Beau se encolhe. Ele está com medo. “Eu quero, ao contrário de minha mãe, apenas lhe dar todo amor que eu posso”, fala sua mãe, quando ela ressurge, após olhar seu filho fazendo sexo com uma prostituta contratada por ela para se passar pela antiga memória de Beau. A repressão é psicológica, sim. Mas o corpo também se contrai. Ao ser encurralado, ele é forçado a ver seu antigo sótão, de memórias que ele gostaria de esquecer. Lá está um grande pênis, sem estar encolhido, sem o perigo de recrudescimento que Beau tanto tem medo.
Ser livre, como?
Beau teme sua mãe, assim como Norman Bates. E, assim como ele, a morte passa a ser o caminho escolhido. Seria mesmo? A morte seria, para Aster, a única experiência libertadora do trauma? Dani, em Midsommar, é talvez seu grande exemplo. Beau, no entanto, não tem controle sobre a vida e a morte. Ele surge e sai de cena como um acessório. Um dispositivo a ser usado por pessoas além dele. Sua única forma de controle é quando ele acha uma televisão e avalia o caminho adiante. Até onde ele vai chegar. E lá está a resposta. A triste resposta…
À deriva.
Beau tem medo de falar seus traumas, de seu abuso e recorre a alegorias dentro de um pesadelo. Um pesadelo que nem ele nem seu público consegue sair até o fim.