[Ponto de Vista] A Loja da Esquina em Mens@gem para Você

A linha tênue que conecta o longa-metragem de Ernst Lubitsch, A Loja da Esquina, com o de Nora Ephron, Mens@gem para Você, é a forma como o relacionamento à distância ocorre. Em épocas de redes sociais, com a inclusão digital originando romances ou se adaptando as noções de distância, a mensagem das duas obras não diferem muito quanto o que todos buscamos em nosso dia a dia: alguém que nos complete. Apenas a época em que estão embutidos origina uma divergência na sua finalidade – de 1940 para 1998.

A Loja da Esquina é lançado em uma época em que o mundo está em guerra e o público busca uma paz particular e otimista nos cinemas. A crise financeira americana de 29 começa a parecer um fantasma, uma sombra distante, ainda que a Europa padeça. “Esse foi o nosso melhor dia de vendas desde 28”, diz o dono da loja de conveniências que ganha seu nome e que representa um sinônimo de felicidade a todos os seus trabalhadores.

O clássico estrelado por James Stewart gira em torno de Alfred (Stewart), que é empregado de uma pequena loja em Budapeste e se apaixona por Klara (Margaret Sullavan), uma mulher com quem se corresponde sem nunca tê-la visto. Ela acaba por trabalhar no mesmo lugar que Alfred, na mesma loja, sem saber que ele é o seu correspondente. Ambos se detestam, sem notar que são os confidentes um do outro. Todos seguem o dono da loja Hugo Matuschek (Frank Morgan, ótimo), o mundo gira ao redor do personagem, seus funcionários o admiram e respondem de forma positiva aos seus pedidos, menos – claro! – nosso protagonista, que adota uma postura de pensamento próprio e ironicamente conquista o dono da lojinha.

A personagem de Meg Ryan está inserida em outra realidade, ainda que na mesma lógica capitalista: a crise é megastores roubando os lugares que eram destinados as lojas pequenas de esquina. Há um mundo mais maniqueísta, igualmente. Quando o dono da gigantesca livraria Fox é indagado sobre qual é o tecido do sofá, por exemplo, ele responde: “dinheiro”.

Mens@gem para Você tem seu toque de encanto. A diretora Nora Ephron, que já havia trabalhado em um inesquecível romance à distância chamado Sintonia de Amor, deixa para o terceiro ato suas principais decisões combinadas com a inegável química de Hanks e Ryan.

Observe, na segunda metade do filme, a transição que é feita de uma comemoração de natal para outra – denunciando que enquanto uma é mais clássica e sem vida, a outra é muito mais amistosa e mágica. Os próprios closes na diversão do natal em família da personagem de Ryan ajudam a mostrar a proximidade daquelas pessoas, ainda que exista um obstáculo entre Ryan e o namorado.

A diretora também salienta o contexto tecnológico – em 1998 – por meio da passagem pelas redes nos créditos iniciais (o começo com o logo da Warner é marcante) e os sons dos teclados com a seta nos fornecendo a imagem da cidade também é bastante elegante. Aliás, a montagem atinge um belo instante ao combinar a arte da recriação no computador com a própria realidade – culminando na corrida de uma pessoa na frente da casa de Kathleen.

Em contrapartida, as diferenças de estilo e nos rumos da história divergem em qualidade. Se no remake o filme não é nada sutil nos encontros e desencontros do casal e peca pela falta de imaginação ao conferir uma narração em off na leitura de e-mails, Lubitsch prioriza sempre a organização de sua mise-en-scène para gags visuais e particularidades de cada um de seus personagens. É perceptível nos frames abaixo como o diretor separa cada um dos empregados da loja da esquina por perfil, conforme eles vão se aproximando do estabelecimento:

Pirovitch é o primeiro a chegar (e o primeiro a sair na cena final)
Conhecemos também Pepi e observamos como ele ainda não é tão bem aceito entre os funcionários, geralmente aparecendo carrancudo ou fora de plano, neste e nos frames seguintes.
Aos poucos, cada um dos personagens vão sendo apresentados ao público.
Os personagens chegam e se dirigem ao mais antigo, Pirovitch. Ele é nosso primeiro elo de ligação com aquelas pessoas. E como elas são unidas.
A partir do quinto frame, porém, veja como é nítido o distanciamento de Vadas do resto dos funcionários.
Vadas (lado esquerdo) tenta ganhar a atenção de cada um, sem êxito.
Ele busca atenção de uma lado para outro.
mas é o personagem de Stewart o centro das atenções – todos o ouvem fielmente.
deixando Vadas sozinho em outro plano.

Só nessa avaliação social, o diretor já comprova ter controle absoluto sobre o destino de cada um. Investindo no tom cômico levemente dramático, Lubitsch também aposta nas gags visuais e no timing de Pirovitch para sustentar sua estrutura no primeiro ato: são irresistivelmente hilárias as saídas do personagem quando o chefe pede opiniões sinceras, afora seus diálogos (“Se a pessoa for realmente sua amiga, ela vai depois do jantar” ou “Não misturo estoque com prazer” são bons exemplos). Ao mesmo tempo, exibe uma profunda coragem ao trazer um ponto de virada em que o protagonista é demitido com trinta minutos de projeção e outros personagens se apossam de forma mais definitiva do longa-metragem, como é o caso do ótimo William Tracy – e a cena em que imita vozes e dá a dica pelo telefone é inesquecível.

Designando o desemprego como pano de fundo e profundo quanto aos temas que aborda, A Loja da Esquina consegue dar substância a sua principal finalidade (o relacionamento dos protagonistas) sem se render a artimanhas que abafem toda a elegância que nos fisga até o desfecho. Desde o desabafo interrompido de Matuschek até as divisórias entre Novak e Kralik as cenas são muito bem controladas. Mens@gem para Você não tem o que o Hollywood Reporter chamaria de “o toque Lubitsch”, ainda que tenha seu próprio charme. É notável que a sugestão íntima da carta acaba se sobrepondo à impessoalidade do correio eletrônico: uma batalha que nem o cinema conseguiu dar um rumo diferente.

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