Midsommar – O Mal Não Espera a Noite, de Ari Aster

— Já é amanhã?
— Da perspectiva do ontem, sim.

O novo filme de Ari Aster, Midsommar, basicamente sintetiza o horror moderno como uma ode ao estranhamento. Com a rica evolução do gênero através dos anos, o medo passou a ser muito mais uma associação simbólica de angústia e perturbação do que a literalidade de um monstro ou, diria também, do próprio satã. O diabo moderno não se mostra, mas se sugestiona. E perturba. As plateias, em consequência, riem desconfortavelmente com seu próprio medo, embora não tenham certeza que estão rindo de algo que é ruim, afetado ou perverso. É o que fez com que a Paramount, por exemplo, fosse exatamente na contramão do marketing habitual em mãe!, enaltecendo as críticas negativas, sobre o poderoso e controverso filme de Darren Aronofsky, que cultivava um cinismo religioso acerca da mãe natureza e de um Deus misógino, o que fez com que os espectadores se sentissem incomodados com as sutilezas e com o fato de não perceber o que realmente a obra queria mostrar.

Por quê? Pois ainda que se assista a um filme de terror nos cinemas, a sensação que se busca é a de prazer ou a de recompensa. Não, diretamente, a de medo. Gostaríamos sempre de ter a certeza: a) de saber aonde o filme está indo; b) antever situações que os protagonistas passarão; c) avaliar que jamais estaríamos naquela condição, pois, afinal, somos muito mais inteligentes do que os personagens. A recompensa é individual. Se nos sentirmos ignorantes ou amedrontados, o prazer não vem, o incômodo toma conta e abominamos o que estamos assistindo.

É de uma ousadia contagiante, portanto, que Midsommar entende o papel que está disposto a ele – ao abordar as nossas próprias limitações diante de outra cultura. Qual a nossa barreira, afinal, diante de outra sociedade? Quão volúvel é a moral? Ou, melhor, o nosso senso de decência? A sensação de imoralidade de uma obra passa pelas nossas certezas sobre o que é certo e o errado, sem notar a necessidade colonizadora. Quando os americanos chegam ao local da Suécia em que passarão seus próximos nove dias, eles são recebidos com presentes, fartura, música e rituais. Ao princípio, avalia-se com curiosidade o diferente, o estranho, como tudo que se começa – há o fogo, a comida e o canto. Saber-se-á que há algo errado no instante em que eles passarão de catequistas de sua cultura para os catequizados. Isso é o que assusta, na obra de Ari Aster, e nos joga numa noção de espaço-tempo tão oportuna e diferente.

Um dos diálogos trocados no primeiro contato com o Midsommar real é:

– Que horas são?
– 21h.
– Mas o céu está azul. Não está certo.
– É assim na Suécia.
– Não, isso está errado. Tem algo errado aqui.

Para um americano que foi para outro país para provar drogas e sexo diferentes, algo está errado. Ao homem que foi estudar, o errado é interessante. Para quem foi tentar passar pelo processo de luto, por sua vez, o estranhamento se torna instigante e, naturalmente, acolhedor. Não à toa, Aster nos coloca diante de duas cenas emblemáticas de suicídio no início de cada parte: na primeira, o suicídio de uma americana dita o rumo da vida da irmã afetada, que ainda lida com o assassinato dos pais pela própria irmã; na outra, o suicídio não é visto como tal, ele é o fechamento da vida, de um ciclo, no qual há uma celebração religiosa e um compartilhamento de dor e prazer. No primeiro, uma mangueira dos bombeiros (de cor amarela) nos leva à morte. No segundo caso, girassóis nos orientam pela estrada. O choque está em como nos sentimos diante disso.

“Não pule. Não faça isso, senhor. Ajudem ele, seus monstros!” é o que grita um dos casais, ao se deparar com esse choque de realidade.. É normal que queiramos passar a nossa noção do que é certo, como se apenas nós a possuíssemos. É o que o casal faz. Ao olhar para os outros, não entendendo como podem achar aquela situação normal, o estranhamento se transforma em pavor puro, no contato inesperado com a morte. Ao se tornarem os diferentes, eles tentam ir embora.

Seria desonesto afirmar que o mundo de Midsommar é ético, no entanto. Essa não é a proposta de Ari Aster, embora o cineasta se interesse pela semântica da expressão. Ele se encanta pela nossa peregrinação e nosso contato diante da morte e da vida. O ciclo que pode ser tanto acalorado quanto sombrio. Na pequena comunidade, a dor, o sexo, a alegria e a dança são compartilhadas. Se dá e se recebe, na mesma medida. Tudo é calculado. Tem o brinde à morte e tem o brinde à vida. É uma terra de controle, onde se conhece o destino de cada um. Há uma cena em que Chris encara um urso no fogo, ao aguardar Siv. Ele vê seu fim e não o percebe, assim como não perceberá novamente na cena seguinte ao observar o equilíbrio da cruz, da dança e do templo.

Além da família, é a confiança, a segurança e a harmonia que consentem Dani se deixar levar e se transformar na pequena comunidade. Cheia de flores, que em sua “civilização” representaria o luto pós-morte, ela agora se sente em paz e sorridente por poder determinar e controlar o fogo e a vida – quem vive, quem morre.

O mundo de cores de Midsommar

(leia essa parte somente depois de ter assistido ao filme)

Quando se observa o primeiro quadro do filme, a natureza dúbia das coisas é exposta, evidenciando a morte no azul e o calor quase cegante e harmonioso do amarelo. A atmosfera mundana será sempre orientada por esses extremos, os quais correspondem ao equilíbrio do mundo e cercam o emocional de cada personagem, em Midsommar. O desenho de produção da obra-prima de Ari Aster comprova constantemente dualidades em cada enquadramento do filme – torna-se comum, por exemplo, flores vivas e mortas sendo dispostas de um lado a outro, enquanto os protagonistas permanecem no centro do quadro, abajures inclinados ou retos mostrando a delicadeza da harmonia das salas em instantes perturbadores e até mesmo quadros díspares orientando essas individualidades: note acima da protagonista uma criança beijando um urso, com o inconsciente dela mostrando o predador que compartilha seu coração, num mundo abusivo. Da mesma forma, avalie como sempre existe contraposição em cada frame da primeira parte, às vezes um papel e uma caneta estão separadas por um notebook; ou Dani está entre um pente e um retrato; ou ela está no centro enquanto fala ao telefone e retratos desfocados preenchem o lado direito, ao passo que, no lado do telefone, no de Chris, somente há uma parede vazia.

Os próprios ambientes representam a batalha interna da protagonista, de tal modo, quando observamos as cores opostas da cozinha e da sala, o abajur reto e o outro inclinado no mesmo cômodo, além de quadros azuis e amarelos que parecem ir se transformando tanto quanto a protagonista – em determinado momento, o quadro azul prevê estações da lua, sem completude, ao mesmo tempo que o amarelo evidencia cabeças em raízes de árvores. Um flerte belíssimo com o primeiro quadro do filme, veja só.

Existe algo de Anticristo, de Lars Von Trier, e até mesmo Melancolia, no seu início: o público se vê diante de algo que metaforiza o amor, a depressão, o luto e o controle sobre a morte. As similaridades com Hereditário, nesta esfera da “fraqueza” perante o luto já se mostra uma marca visível do cineasta, inclusive. Embora sejam irmãos quase siameses, Hereditário e Midsommar mostram que há diferentes formas de lidar com a perda. Enquanto um mexe com a passividade e o aproveitamento de nossa fragilidade, o outro é permissivo. Dani quer que seu destino se torne aquele. Aos poucos, ela passa pela desvinculação mundana para chegar a uma cura individual.

Aliando-se à esta ótica, os figurinos orientam o espectador conforme as personalidades dos personagens se desenvolvem também. Perceba como os azuis dos personagens vão se tornando cada vez mais claros em determinadas pessoas. Apenas Simon, a esposa, Mark e Christian permanecem com camisetas com tons azuis fortes. Eles são pessoas que jamais conseguem se desprender do mundo que conhecem. De sua cultura. O único instante em que Josh e Chris são visualizados com as mesmas roupas acinzentadas é quando são forçados a fingir um compartilhamento de ideias que não acontecerá na prática. Uma dissimulação que sabem fazer bem.

Já Dani começa com uma camiseta salmão, passa para uma camiseta estampada com estrelas até chegar às cores claras daquele universo. Pelle cobre aos poucos o azul americano com a túnica branca, até não ter mais nada por baixo, quase de forma imperceptível, igualmente. As cores orientam muitíssimo bem a narrativa de Ari Aster, que ainda estabelece o contraste entre o azul e o amarelo na comunidade sempre que haverá uma morte (o casal que irá ao Ättestupa usa túnicas azuladas, p.e.), na disposição da natureza (a própria meca triangular amarela da comunidade tem portas azuis) e as flores azuis criam um norte bastante mórbido – ainda mais quando paralelas aos cabelos loiros da protagonista durante um jantar.

Ari Aster contamina sua narrativa com uma atmosfera que denuncia sua humanidade, mesmo que queira mostrar um mundo longe de como a conhecemos no dia a dia. Um exemplo disso, talvez, seja a melhor cena do filme, onde o diretor filma o sexo com uma delicadeza tão forte quanto macabra. Ali, como no luto ou na dança das bacantes, há alucinógenos, fraqueza e força, aceitação e rompimento de barreira e, finalmente, ritos de passagens. A ruiva consente à Chris o sexo não para o prazer, mas para um ciclo de fecundidade. Ao passo que todas as matriarcas de diferentes gerações formam uma espécie de cordão (um umbilical, metaforicamente), o homem se vê diante do sucumbimento ao desejo. É a última necessidade, igualmente, que Dani precisaria para se desintoxicar do sonho americano, do mundo que antes conhecia e de sua dependência. Ao vomitar, ela expurga. Ao compartilhar a sua dor com dezenas de irmãs novas, ela percebe, como o espectador, que há dor e prazer, no sexo, na vida, na traição e no mundo.

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