EUA, 2018. Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole, baseado nos personagens de Stan Lee e Jack Kirby. Elenco: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Danai Gurira, Martin Freeman, Daniel Kaluuya, Letitia Wright, Winston Duke, Sterling K. Brown, Angela Bassett, Forest Whitaker e Andy Serkis . Duração: 2h14min.

Talvez a proximidade da morte seja necessária para que se tenha a indispensável liberdade de abordar o assunto.

Carl Jung

Diga-me, então: que poder teria a Morte, se depois que te fosses, a posteridade lhe deixasse viva?

Shakespeare

A mais perigosa criação no mundo, em qualquer sociedade, é um homem sem nada a perder,”

Malcom X

Dê o primeiro passo. Não é necessário que você consiga visualizar toda a escada, apenas dê o primeiro passo.

Martin Luther King Jr.

Em tempos como o nosso, onde a era da informação nos permite compartilhar pensamentos em microssegundos sobre qualquer coisa, o absolutismo moral com que tudo é encarado nos rende instantes de pura demagogia sociológica. Afinal, enquanto se aplaude o óbvio em discursos feitos para angariar likes e reconhecimento de que, sim, quem escreveu o texto também é uma vítima e também precisa de atenção, o que incomoda não ganha o debate merecido. Por quê? Se fosse fácil debater o sistema que estamos inseridos, ele não seria mais o sistema que estaríamos, certo?

Um documentário poderoso lançado em 2016 chamado Hypernormalisation falava exatamente sobre esse nosso apego por tentar resolver sintomas para não ter que lidar com a doença elementar. Que se nos forçássemos a apontar para as sequelas pareceria de alguma forma que estávamos nos preocupando em solucionar o todo; quando, na verdade, o ciclo se mantinha intacto e, inclusive, ainda mais solidificado, já que o sistema precisa manter as mentes ocupadas. Com a raiva cada vez mais acentuada e sem um direcionamento pragmático, medido quanto a raiz do sistema, os discursos de mudança se enfraqueciam na mesma intensidade com que eram vociferados. Passeatas eram feitas, mas sem saber bem para onde ir. E como toda a estrutura sem líderes, os aproveitadores mudavam o tom do discurso bem intencionado por algo mais nocivo. O diretor Adam Curtis pegava principalmente o exemplo da Primavera Árabe para expor sua tese.  

Neste ano, inclusive, um dos maiores exemplos quanto ao maniqueísmo raso praticado pelo absolutismo moral que tomou conta do nosso debate social foi a recepção unilateral de um filme tão complexo quanto Três Anúncios Para um Crime, que ao abdicar de fazer uma história com heróis e vilões e expor uma realidade em que todos são falhos de caráter e tentam apenas ser o melhor que podem naquele mundo em que foram criados, na qual todos são vítimas de um sistema cultural racista e misógino, despertou um discurso fácil que apenas aponta o problema sem saber muito bem o que quer dizer com aquilo. “Aquilo é ruim, pois aquelas pessoas, ahn, são ruins. E você não pode dar um final feliz para pessoas ruins, certo?!”. Novamente: é fácil aplaudir o óbvio. Mas e quanto a debater o que nos deixa incomodados? É tão fácil quanto?

Num filme como Pantera Negra, o discurso reducionista de vilões versus mocinhos não é algo buscado tampouco. Pelo contrário, Coogler se apoia num debate histórico que já foi o pivô entre dois grandes pensadores americanos modernos: Malcom X e Martin Luther King Jr. Como se confronta a violência social? Com mais sangue ou com discursos de união e paz? Não é uma batalha em que se vê por completo a visão que sairá vitoriosa, pois, de novo, não saem vencedores desse debate. O debate acerca do sistema é mais amplo e busca a erradicação completa de uma cultura separatista.

Tal como Malcom X e Luther King, a busca de  T’Challa e Killmonger talvez seja a mesma, os caminhos que se tornam opostos – a conciliação contra a guerra. Coogler age consciente sobre a natureza do seu discurso e não cai na armadilha de estabelecer vínculos completos com apenas uma das partes. Evidencia que há discursos coerentes com a natureza de vida daquelas pessoas. Independente de suas oposições. O prazer pela violência de Killmonger é visto nos detalhes, como um sorriso em um determinado momento de uma luta. E não à toa, o seu momento mais belo é quando forçado a encarar o fim, ele estabelece uma conexão final com o que lhe trouxe até ali: a memória de seu pai.

Ao mesmo tempo, é muito atraente a visão de Coogler em colocar o debate central na visão de primos. Não é preciso que Ulysses Klaue (Serkis, divertidíssimo) seja o antagonista para a questão racial ser um objeto de análise. O diretor deixa claro que o conceito é outro. Que estamos falando de indecisões na própria maneira de agir dentro de um espectro racial. Ele fala sobre raça sem que precise dizer que está falando sobre raça. Assim, a sutileza moral de Pantera Negra chega no auge quando, diante do caos, as pessoas têm que lidar com posicionamentos sociais premeditados: ajo pelo meu país ou por meu país?

Pantera Negra, afinal, é um filme sobre tradição e reverência (a cena em que T’Challa desce de sua nave para uma cerimônia é uma das mais bonitas que o mundo Marvel já nos proporcionou), mas também sobre conceitos racionais. Wakanda representa um sistema. T’Challa e Killmonger representam ideias. Sim, talvez algumas ideias acabem morrendo, por um bem maior, na percepção de Coogler. Mas não deixam de ser necessárias para o debate. 

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